A polêmica contagem de medalhas dos EUA e os títulos dos contratos: a qualificação de situações jurídicas

Quinta, 8 de agosto de 2024

A polêmica contagem de medalhas dos EUA e os títulos dos contratos: a qualificação de situações jurídicas

A POLÊMICA CONTAGEM DE MEDALHAS DOS EUA E OS TÍTULOS DOS CONTRATOS: A QUALIFICAÇÃO DE SITUAÇÕES JURÍDICAS

Pablo Galvão Marano

 

            Como já tive oportunidade de expor nesse espaço[i], se o ambiente é de Olimpíadas, logo encontro um gancho para unir a paixão pelo esporte ao estudo dos contratos. Na manhã em que este texto é escrito, uma curiosa notícia[ii] me chamou a atenção: os Estados Unidos da América – incluindo os veículos de comunicação do país - contabilizam o quadro de medalhas de maneira distinta do resto do mundo, inclusive do Comitê Olímpico Internacional – COI. Assim, na contabilidade de medalhas estadunidense o total de medalhas conquistadas, independentemente da posição no pódio, são o primeiro critério classificatório, enquanto o resto do mundo considera as medalhas de ouro para esse mesmo critério de classificação, seguidas das medalhas de prata e de bronze. Deste modo, na contagem dos EUA, seriam eles os líderes do quadro de medalhas (ao menos, na data em que estas linhas são escritas[iii]) e não a China, sua rival ideológica e, também, política. Ou seja, os EUA elegeram critérios distintos do resto do mundo, para, em benefício próprio[iv], serem alçados à primeira posição do quadro de medalhas, sob tais critérios.

            Curiosamente, a prática estadunidense não parece estar restrita ao ambiente olímpico. Na tradição desportiva daquele país, costumam designar títulos de competições nacionais como “campeonatos mundiais”. Isso acontece na NBA, na NFL, na NHL e na MLB. Independentemente da modalidade, os campeonatos organizados nacionalmente recebem o pomposo nome de mundial, atribuindo-se uma qualidade (mundial) que a competição em questão, definitivamente, não ostenta.

            Essa conduta pode nos conduzir a uma reflexão sobre títulos e nomes atribuídos aos contratos e, não raramente, a seus próprios elementos (cláusulas, capítulos e institutos jurídicos). Sobretudo no ambiente empresarial, é cada vez mais recorrente a celebração de contratos atípicos (sem previsão legal expressa) e, mesmo no caso de contratações que envolvam contratos típicos (por exemplo, uma compra e venda), os negócios têm ganhado complexidade, seja pela sua estrutura (contratos coligados, redes de contratos, negócios estruturados em contratos master, etc.), seja pelo seu conteúdo (contratações que envolvam tecnologia, que estejam sujeitos à regulação estatal, etc.).

            Neste ambiente, não é raro nos depararmos com construções criativas para atribuir títulos aos contratos, como é o caso do contrato designado como “Contrato de Compartilhamento de Estrutura Física, Cooperação Estratégica e Outras Avenças”, que, na verdade, nada mais era que um contrato misto que conjugava a locação de um espaço físico para que a contraparte explorasse seus serviços (fornecimento de lanches). Noutros casos, a simplicidade tem lugar, mas de tal modo que nada diz. É o caso de contratos associativos, comumente chamados de “contratos de parceria”.

            E qual seria o problema com estas nomenclaturas. A rigor, nenhum. Contanto que o contratualista tenha em mente que o nome atribuído pelas partes ao instrumento de contrato ou a institutos jurídicos nele contidos não os qualificam. Ou seja, assim como dizer que um título nacional é um título mundial não torna a conquista internacional, atribuir nomes equivocados (ou atípicos) a um contrato não atrairá a tutela jurídica do nome eleito. Dito de outro modo, se as partes designam o nome de “prestação de serviços” para um contrato de licenciamento de um programa informático, o contrato será de licenciamento, não obstante o nome atribuído. Do mesmo modo, nesta data, os EUA não ocupam a primeira posição no quadro geral de medalhas, somente porque estadunidenses elegeram critérios distintos da entidade que organiza as Olimpíadas. A propósito, o Boston Celtics, vencedor da última temporada da NBA, também não é campeão mundial de basquete da temporada, mas apenas da liga estadunidense.

            A grande armadilha que o tema carrega, no âmbito do direito contratual, é o contratualista se nortear, para a verificação da tutela jurídica atraída para o negócio jurídico no processo de qualificação do contrato, pelo nome a ele atribuído. Retomando o exemplo anterior, não obstante o contrato ter sido intitulado “prestação de serviços”, por se tratar, em verdade, de um licenciamento de programa informático, a tutela será conferida não pelo tipo específico de prestação de serviços contido no Código Civil, mas sim pela tutela conferida pela Lei 9.609/98 (além das demais normas da teoria geral das obrigações).

           A simplicidade do exemplo acima serve, apenas, para expor o ponto de reflexão aqui proposto. Na prática, em muitos casos, a complexidade dos negócios jurídicos exige, de fato, do contratualista o rigor técnico para a identificação da tutela jurídica aplicável. A qualificação do contrato é, pois, o ponto de partida do advogado contratualista, afinal, não se pode iniciar a estruturação de um negócio jurídico, sem antes se perquirir quais serão as normas que regerão tal relação. Afinal, não há como começar a partida, sem conhecermos quais são as regras dela.

           A atribuição de nomes jurídicos menos rigorosos, assim digamos, pode surgir de uma simples conveniência das partes (por exemplo, quando denominam um instrumento de contrato como “parceria”, quando, na verdade, se tem um contrato típico); de um erro das partes (quando acreditam estar, de fato, contratando o negócio que emprestou seu nome ao instrumento, mas sua qualificação é de outro tipo contratual); ou por malícia, para buscar se esquivar de uma tutela jurídica indesejada pelas partes (é já bastante conhecido o caso da incorporação inversa, em que, para a obtenção de vantagem tributária contrária ao ordenamento, utilizou-se de uma “inversão” dos papéis exercidos pelas partes, denominando-se de incorporadora a pessoa jurídica que, na verdade, seria a incorporada e vice-versa).

          Quando a escolha do nome equivocado do contrato é por simples conveniência das partes, o contratualista deve, apenas, estar atento à identificação da tutela adequada do real negócio jurídico, no processo de qualificação do contrato. Portanto, nesse caso, basta ao contratualista não se descuidar dessa primeira e fundamental etapa do processo de estruturação dos negócios, que é a sua qualificação.

          Quando a escolha do nome deriva de erro, o problema se torna grave, pois o contratualista pode se nortear por uma tutela jurídica que, na verdade, não será atraída para reger a relação contratualizada. Fatalmente, a contratação poderá padecer de invalidades, o que, a toda evidência, frustra o próprio fim da contratação escrita, que é conferir segurança e previsibilidade às partes.

          Por fim, quando a escolha equívoca deriva da intenção das partes, com o fim de se esquivar de uma tutela jurídica indesejada, as consequências podem ser ainda mais gravosas, à medida que a conduta pode ser qualificada como simulação. Somente para ilustrar a gravidade das consequências, na seara tributária, o fisco costuma afastar o negócio simulado e tributar o negócio que se dissimulou (com todos os consectários moratórios do não pagamento tempestivo do tributo devido pelo negócio dissimulado), na esteira da solução prevista no Código Civil, em seu artigo 167.

          Portanto, assim como devemos ter reservas quando a comunidade dos EUA declara liderar o quadro de medalhas (nesta data), ou quando os torcedores do Boston Celtics se intitulam campeões mundiais, o contratualista deve ter igual cautela com os títulos atribuídos ao contrato, a partir da valiosa lição: o nome atribuído ao instrumento de contrato não qualifica o negócio jurídico, sendo tal função desempenhada pelo conteúdo da avença.

 

Pablo Galvão Marano é Fundador do CADP. Mestre em Direito Civil pela PUC-RIO. Pós-graduado em Direito Civil Constitucional pela UERJ. Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV. Especialista em Mediação Empresarial pelo Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA. Mediador Extrajudicial. Bacharel em direito pela UFRJ. Ex-Professor de Direito Civil da UFRJ. Advogado com atuação em contratos e direito empresarial. Sócio do Marano Advogados Associados.

 

[i] Cf. https://www.cursocadp.com.br/blog/o-que-a-ginastica-artistica-pode-ensinar-aos-contratualistas

[ii] https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2024/08/01/brasil-no-12o-lugar-no-quadro-de-medalhas-com-os-estados-unidos-na-lideranca-entenda.ghtml

[iii] Como esperado, dias após a elaboração deste texto, os atletas olímpicos dos EUA já haviam superado os chineses, alçando o país ao topo do quadro de medalhas – no critério internacional.

[iv] Fala-se em “benefício próprio”, pois, como demonstra a notícia, “Em Pequim 2008, quando os chineses sediaram os Jogos e dominaram as medalhas de ouro, os Estados Unidos começaram a ordenar a classificação olímpica por número total de medalhas. A mudança chamou a atenção de todo o mundo, já que o critério do COI, ainda que extra-oficial, seja o número de medalhas de ouro como principal indicador. A partir de então, o país adotou este critério sempre que esteve em desvantagem no número de medalhas de ouro nos Jogos.” Disponível em: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2024/08/01/brasil-no-12o-lugar-no-quadro-de-medalhas-com-os-estados-unidos-na-lideranca-entenda.ghtml.